Imagens:leão, porque tinhas olhos leoninos, leãozinho, nascido no último dia do signo...
Anjo enlutado.
Ligavas e dizias que virias pelo natal.Mas que antes,eu fosse te visitar, amigo velho.Em nenhum momento,eu te disse que iria.Dizia que não podia,sempre o trabalho, as obrigações...
Mas que viesses passear, meus filhos te hospedariam.Teu espírito hedonista não entendia bem meu espírito comedido.E, no entanto, apesar dos caminhos sempre paralelos, quando nos encontrávamos ao longo de quarenta anos,era uma festa de rememorações.Celebrávamos os jovens que fomos, que viveram em uma Ditadura e muitas vezes tiveram o coração apertado à notícia de algum amigo preso, ou desaparecido.
Quando fomos entrevistar Poerner e Carlos Heitor Cony, soldados com metralhdoras nos impediram a passagem, mas fomos ao hotel onde estavam e conversamos longamente com eles.No outro dia, o jornal ostentava a entrevista.Nem sei se era coragem, talvez a ousadia dos jovens , apenas.A falta de alcance com as possíveis conseqüências.Mas também , naquela época, pouco sabíamos dos acontecimentos marrons e vermelhos dos porões .
Ou quando teu Gordini parara na linha de bonde .Vínhamos do morro ,de uma camaroada,onde a Escola de Samba Feliz Lembrança,comemorava uma vitória no carnaval de Juiz de Fora.Depois de muto som , declamaste um poema magnífico sobre as mãos de Cristo-e muitos choraram.Tínhamos de ir no Clube Sírio Libanês ,fazer a cobertura do desfile da Fhenit, o "Momento 68", onde Raul Cortez e Walmor Chagas declamavam poemas, Eliana Pittman cantava, Caetano Veloso e Gilberto Gil também (ninguém diria, ao vê-los no palco, da espada sobre suas cabeças).
Bonde empurrado , eu precisava estar mais refinada que estava.Saíra à tarde, para entrevistar tua mãe, que recebera um prêmio de cerâmica na SBAAT e estava hospedada no Pálace Hotel, porque torcera o tornozelo e teu pai achara que lá, teria mais conforto, já que o caçula, tu, vivia a viajar para a Bardhal.Vestia uma "maxi-saia" de feltro vinho.Rindo, com aquela risada inconfundível, disseste que colocasse teu chapéu , também de feltro daquela cor.Desabaste o dito cujo e o colocaste em minha cabeça, sobre a longa cabeleira negra.Ao entrarmos, todos se voltaram, mais porque teus quase dois metros e os cabelos louros até aos ombros, só não chamariam a tenção de um cego.
Mas o que me marcou neste episódio que hoje relembro, foi que após tua mãe e nós almoçarmos, pediste que a copeira embalasse tudo que sobrara.Observei, sem saber o porque e nada disse.Então, na rua, saíste distribuindo aos teus pobres, os sem teto, a boa comida do Hotel.E te vi fazer isso muitas vezes.
Hoje, fazem cinco meses que te foste.Na mesma data em que John Lenon se foi.Que meu mano,Nildo, teu amigo, faz aniversário.
Um rapaz que te ajudou, com Amanda a noiva, e de quem me falaste ao contar por telefona ,que a cadelinha Linda Chaia dera cria, dez filhotes,encontrou-me pela Internet.Procurava teu nome, achou minhas crônicas.
E foi assim que eu soube que morreste sozinho.O que alimentava os famintos, morreu sozinho e sem ajuda, no velho chalé que reformara antigamente com tanta alegria.
Minha mãe, enfermeira, que ajudara tantas pessoas em sua passagem, com orações e carinho, cuidados profissionais, nos hospitais onde trabalhava, morreu em acidente,num estrada, sem ninguém que lhe segurasse a mão.
Pensando nessas coisas, baixo a cabeça e choro.Mas não quero lembrar dessa ida para outra dimensão e sim , de teu riso alto, de ti em pé num auditório, aplaudindo a arte de alguém , alto e belo, uma aura de luz sempre emanava de teus cabelos claros quando a luz incidia sobre elas.De quando chegaste às pressas, pois irias a Bicas, para levar tuas telas e querias que eu também concorresse.Pacientemente esperando que fizesse um quadro a lápis azul , de meu maninho que tem Síndrome de Down , ao qual intitulei, para preencher a ficha de inscrição:"Pequeno Mundo do irmão Caçula".Fui Menção Honrosa.Graças à tua generosidade em se lembrar dos amigos.
Eu amava quando assobiavas, sem parar, "Preta, preta, pretinha".Quando abrias a pasta e tiravas cartões com mantras budistas.Quando íamos almoçar no Restaurante Naturalista-uma novidade na cidade.
Lembro alguns versos teus, que poderiam ser teu necrológio:
"Tenho duas pernas e dois pés, e sob eles, terra".
Era um belo e longo poema que publiquei na Gazeta Comercial.Teu recado para o poder:posso ir a qualquer hora...
E uma trova, onde evocavas a filosofia de Ho Chi Min:
"Sofre o arroz no pilão.
Vejam que brancura após"(...)
Dizias que querias vir pelo natal, para eu te relembrar teus próprios versos,perdidos ao longo das fugas para parte alguma.
E ontem , tua idosa mãe -teu amigo conta-me que preservavas o quarto dela- tão longe,em Campo Grande,por telefone, contou-me que em meio às tuas coisas, chegou-lhe também meu presente ,que havias comprado para trazer-me no natal que não alcançaste :um colarzinho ,escrito "Índia', e que já lhe havias dito que era uma homenagem à minha ascendência.E ela me diz:"Você e foi o seu grande e eterno amor".Então, desabo.Por que não fui te visitar ? Quando não chegaste, pensei que estarias em Recife, com teus filhos.Talvez pensasse que estavas casado novamente.Ou tenha me esquecido que já eras um ancião.Esse rapaz sensível, Henrique e sua noiva Amanda, que te ajudaram a doar os cachorrinhos, querem te lembrar com aquele olhar que , a tudo custo, querias que parecesse leonino:teu signo.Felino, sim, mas apenas um gatinho.
Talvez tenhas morrido sozinho porque éramos os mais jovens do NUME-Núcleo Mineiro de escritores- e quase todos os nossos amigos poetas já se foram.Fosse naquela época, estarias cercado daqueles nossos "tios" maravilhosos.
Bem , agora é um consolo pensar nisso:sei que te esperaram em corredor, para aplaudir-te quando passaste para essa nova vida, tão melhor.Da mesma forma que te aplaudiam quando declamavas.
Paz e Luz.
Clevane Pessoa de Araújo